Gourmet


O legado da Soul Food em Paris

6 anos atrás - Julie D.

Soul food, o sabor do Sul dos Estados Unidos

Quando lhe falam em "frango frito Americano", em que é que pensa? Não, não, não se trata da marca de fast-food de Kentucky ... O frango frito é um dos pilares da soul food que, tal como a música soul, pertence à cultura dos Afro-Americanos.

Soul food é a rica e generosa culinária do sul dos Estados Unidos, com sabores da infância recordados com um brilho nos olhos. É também um tipo de cozinha que carrega o terrível fado dos escravos Americanos: inspirado pela sua herança Africana, que mantiveram o melhor possível, apesar do seu desenraizamento e sofrimento. A soul food é uma cozinha popular, com ingredientes e preparações simples que proporcionam sempre resultados revigorantes.

Prato de soul food

O mínimo que se pode dizer é que não se trata de uma cozinha para quem está de dieta. Encontramos o frango frito com leite fermentado, claro, mas também pão de milho doce, batata doce e banana-da-terra frita, para além dos "hush puppies", entre outros. A soul food tradicional faz uso intensivo de banha... No entanto, há também alguns vegetais típicos, como quiabo, couve forrageira ou couve galega. Pode também juntar os verdadeiros chitterlings, um estufado de tripas...

À primeira vista, não parece ter nada a ver com a aclamada elegância da cozinha Francesa – no entanto, graças a circunstâncias históricas particulares, a soul food Afro-Americana tem tido os seus esplêndidos momentos em Paris... Foi descoberta a partir de um episódio há muito esquecido da história Franco-Americana e dos seus descendentes.

Chez Haynes, o restaurante da comunidade Afro-Americana

Em Paris, a época que se seguiu aos horrores da Segunda Guerra Mundial foi de libertação em vários aspetos. Para os soldados Afro-Americanos que vieram combater na Europa, a descoberta de Paris foi também a descoberta de uma cidade que, apesar de não ser totalmente isenta de racismo, claro, lhes ofereceu muito mais liberdade do que o seu país de origem.

Nessa altura, a segregação ainda estava em vigor nos estados do sul. A luta pelos direitos civis levaria eventualmente à sua abolição, mas não antes de 1965. Em França, por outro lado, nada impedia um homem negro de casar com uma mulher branca Francesa e foi isso que Leroy Haynes fez.

Leroy Haynes e o seu restaurante Montmartre

Após o armistício, este Americano atlético ficou em França em vez de regressar aos Estados Unidos. Conheceu Gabrielle Lecarbonnier, com quem casou em 1949. Eles abriram o Gabby and Haynes na Rue Manuel. Depois do seu divórcio, Leroy reabriu o Chez Haynes na Rue Clauzel, ao fundo do Butte Montmartre.

O seu restaurante na Rue Manuel tornou-se o local de topo da cultura negra Americana em Paris. Intelectuais e artistas negros, de visita ou a residir em Paris, reuniam-se aqui: os escritores James Baldwin, Richard Wright e Chester Himes, o pintor Beauford Delaney, os músicos Louis Armstrong, Sidney Bechet, Cab Calloway, Count Basie e Miles Davies.

Com uma personalidade excêntrica, Leroy Haynes era também ator nas horas vagas e desempenhou papéis em vários filmes de gangsters. Podemos vê-lo em Three rooms in Manhattan, dirigido por Marcel Carné em 1965, e num filme de Michel Audiard de 1971: Le cri du cormoran, le soir au-dessus des jonques (O Grito de Alcatraz, à Noite Sobre os Juncos).

Paris, órfã de soul food? Não é bem assim!

Após o desaparecimento de Leroy Haynes em 1986, a sua terceira mulher Maria, de origem Portuguesa, continuou a servir no restaurante Haynes o tipo de cozinha que tornou o restaurante famoso. Durante 23 anos manteve intacta a chama da soul food, ao mesmo tempo que tentou renovar a ementa oferecendo também pratos Brasileiros. Infelizmente, os momentos altos do Chez Haynes pertencem agora ao passado: a comunidade Afro-Americana em Paris já não é numerosa e as noites míticas em que os grandes nomes negros da literatura e do jazz se reuniam aqui não passam de uma memória. O restaurante fechou as suas portas em 2009 e assim se virou uma importante página da história Afro-Americana em Paris.

Durante alguns anos, não houve grandes novidades em termos de cozinha Americana. Os restaurantes de fast-food continuaram a sua expansão implacável, oferecendo aos Franceses mal informados a ilusão de comida "verdadeiramente" Americana.

Na altura, poderíamos ter tentado trazer como consolação outro prato da soul food que reflete a história mista dos Estados Unidos: o pão de milho. Este pão era originalmente de uma receita Nativa Americana, que foi adotada e enriquecida, para se tornar numa típica receita Americana, particularmente apreciada na cozinha Sulista. O pão de milho é tradicionalmente feito com gordura de bacon, mas pode muito bem experimentar uma versão mais leve do pão de milho!

Receita do pão de milho

Frequentemente os Franceses ainda acreditam que não existe gastronomia Americana – os preconceitos que consideram como prato nacional o conjunto hambúrguer-batatas fritas ainda subsistem. Este símbolo da "junk food" detestado pelos Gauleses tem, contudo, pouca relação com a cozinha gourmet Americana. E se o frango frito parecer demasiado semelhante a uma certa ementa de de fast-food, é necessário eliminar essas ideias.

Nos últimos anos, jovens restaurateurs Americanos têm tido a ousadia (alguns espíritos mais desagradáveis diriam mesmo o descaramento) de percorrer a enorme distância até França para mostrar de que é que os Yankees (alcunha que os Franceses dão aos Americanos) são capazes.

Este é o caso de Chief Braden Perkins, nascido em New Orleans – poder-se-ia dizer que a soul food faz parte da sua herança genética. Após o sucesso do seu primeiro restaurante Hidden Kitchen, abriu em 2011 um novo restaurante, Verjus, sempre com a sua parceira Laura Adrian. Verjus é um restaurante chique, cuja ementa de degustação muda com as estações e as inspirações do Chef, e um bar de vinhos mais informal. O Frango Frito com leitelho, salada de repolho e pimentos jalapeños é uma versão revisitada e mais refinada do grande clássico.

O sucesso do Verjus, sem se contrariar a si mesmo, foi repetido por Braden Perkins com Ellsworth, um pouco mais à frente na mesma rua. Uma vez mais, encontramos aqui um autêntico frango frito acompanhado com vegetais marinados, porque em equipa que ganha não se mexe.

Restaurante Verjus - 52, Rue de Richelieu, 75001 – Segunda a Sexta das 19h às 23h - Pyramides, Palais Royal, estações de metro Bourse ou Quatre Septembre

Restaurante Ellsworth - 34, Rue de Richelieu, 75001 - horário: almoço, das 12:15 às 14:15; jantar, das 19h às 22:30; Brunch, das 11:30 às 15h - metro Pyramides ou Palais Royal

Restaurante Niebe Paris

A soul food revisitada: A herança Africana e Caribenha em cruzamento de raças

Fiel às suas raízes Africanas e Caribenhas, a soul food renasceu em Paris numa versão que poderia ser chamada "Francesa". Inspirados na sua própria herança, os restaurateurs Franceses não hesitam em apresentar as suas versões pessoais desta cozinha familiar. Não seria a primeira vez que os Franceses, incitados pelas modas Americanas, seriam encorajados a redescobrir uma parte negligenciada das suas próprias origens.

Gumbo Yaya decidiu especializar-se em: frango frito e waffles autenticamente Americanas, sendo esta combinação tão popular que não é incomum ter que se esperar uma hora para ser servido... Ainda assim, de acordo com os seus clientes, vale mesmo a pena esperar e o aborrecimento será esquecido quando trincar as waffles crocantes, cobertas com diversos molhos. Lionel, o proprietário, venera o frango frito com leite fermentado, em memória das suas tias Americanas que o alimentavam com soul food em Macon, perto de Atlanta.

Gumbo Yaya - 3, Rue Charles Bobin, 75010 – Horário: das 12h às 14h30 e das 19h30 às 22h30, encerrado aos sábados e domingos – metro Colonel Fabien.

A carrinha New Soul Food, por outro lado, apresenta uma resoluta cozinha de fusão, "afrodisíaca" de acordo com as palavras do seu criador, Rudy Laine. Lá podemos encontrar o sagrado frango, revisitado num estilo Subsaariano ou Caribenho. As origens Camaronesas e Guadalupense de Rudy inspiram sabores, como o frango refogado com molho de caril, coco e baunilha, molho de banana-da-terra e amendoim, attiéké de mandioca e molho yassa, ou o miondo safou de peixe. Seguimos gulosamente o camião por Paris, mas, uma vez mais, tem que se chegar cedo para evitar as longas filas!

A carrinha New Soul Food está muitas vezes em frente à Biblioteca mk2, podendo encontrar o horário no site – a localização: Biblioteca mk2, metro Bibliothèque François Mitterrand ou Quai de la Gare.

Quanto ao Niébé, o nome do restaurante celebra o cornille, o feijão-frade ou "black eyed pea" nos Estados Unidos, que é também parte integrante da soul food. O Chef Rosilène Vitorino leva a soul food até ao Brasil e aos seus sabores tropicais. O restaurante propõe a sua ementa em duas versões, clássica e vegan – permitindo aos vegetarianos descobrir estes sabores únicos, sem frango frito ou banha de porco!

Restaurante Niébé – 16, Rue de la Grande-Chaumière, 75006 – aberto de terça a sábado das 12h às 15h e das 19:30 às 24h – metro Vavin